Sedimento fino

Sou argila,
sedimento fino em suspensão.
Toda intempérie me carrega.
Parte de mim é erosão.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Pensar às avessas


Penso nos avessos,
penso às avessas,
pois,
nos avessos às avessas
é cretino pensar,
meu pesar.


Penso na vida.
Penso na Terra,
na terra, no céu.
No que é da terra
e no que é
do céu.


Penso na morte,
na terra e no céu.
E na Terra
que tudo abriga.
E no que é do céu
e da terra.


Penso nas distâncias.
Nos encontros e despedidas.
Nas partidas
daqueles que partem
sem saírem do lugar.
creem na partida
daqueles que permanecem.
E aqueles que permanecem
são os que moram no céu.
Os que partem
são os que moram na terra,
pois a carne é o que parte,
pois que fica na terra
e retorna à Terra.


Penso na saudade.
Saudade que ambos sentem.
Quem mora na terra
e quem mora no céu.
Cada qual com sua visão:
Quem mora no céu,
a dizer: "Eu não parti",
e quem  mora na terra,
a indagar: "Por quê? Por que partiste?".

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Tiro de meta


Um exemplo de como podemos comparar a humanidade a ecologia, sem o preciosista selecionamento dessa espécie, no reino animal:

Assisti, num programa jornalístico de televisão, uma notícia com imagens de um espancamento, onde um homem de 37 anos é espancado por um grupo de jovens. Após ser espancado, passam-se 20 segundos e aparece um outro homem, que lhe retira o cinto (o cinto!) e os sapatos e vai embora. Isso me lembra as leis da savana, onde é possível ver um grupo de leões a caçar uma zebra. Logo em seguida, os comedores de restos aparecem para fazer a sua parte. É o que acontece no exemplo do espancamento: Os leões predam a vítima e, 20 segundos depois, um ladrão, como um abutre que se alimenta dos restos deixados pelo leão, rouba ou furta (isso vai depender do estado do espancado) seus pertences. Até aí, a comparação da humanidade com o cotidiano ecológico dos outros animais se mantém como comparação, mas, passa de comparação para comum analogia, quando concordamos que o leão mata para alimentar-se, bem como os abutres aproveitam-se dos restos devido a mesma necessidade fisiológica. Contudo, um fato torna difícil a crença de que o ser humano seja mais evoluído que os outros animais: O leão não retorna pelos restos deixados pelo abutre, nem para cobrar o tiro de meta.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Breve estória de João


Vou contar a estória de João. João, criatura de aparência aparentemente tão comum, de nome tão comum, foi um homem mau, muito mau, já nasceu mau. Era tão mal, que não pecava. Nunca pecou. É, abdicou de pecar para, com justiça, poder atirar pedras em alguém que dissesse: "Quem nunca pecou, atire a primeira pedra". Num dia qualquer, de um mês qualquer de um ano qualquer, João ouvira a célebre frase. E, assim, sem pensar 3,1415 vezes, João pecou (não precisa dizer como). Já era velho, tinha noventa e três anos de idade. Pecou e morreu. Pecar fora seu último suspiro de vida. Viveu como um homem santo. Morreu como um assassino.


(Breve pausa).


Ironicamente, parte desta narrativa inventada é falsa. Então, vou explicar direito esta estória, a de João da Rocha Pedrosa. João já nasceu com uma ideia fixa, com um objetivo na vida. O homem mais disciplinado e dedicado o qual já ficcionei passou cada momento da sua vida almejando, com afã, com afinco e com outros sinônimos, apedrejar alguém. Porém, extremamente metódico, criou um "se" para o seu objetivo, pois não achava correto, em lógica, apedrejar por apedrejar. Tinha que haver um "se". Foi então que João decidiu apenas apedrejar a pessoa que dissesse a frase "quem nunca pecou, atire a primeira pedra" e, assim poder exercer toda a sua maldade de homem mau, seja mau com u ou mal com l. Os anos se passaram e João não ouvia tal frase. Apenas em sua velhice, com seus noventa e três anos de idade, foi que ouvira a frase. Quando do fatídico dia, passava o verão em sua residência, em Banguecoque, aos cuidados de sua amante transexual. Um crente bateu à sua porta para pregar a palavra do Senhor e, no meio da prosa, largou o verbo: "E Jesus disse: Quem nunca pecou, atire a primeira pedra". João tivera um ataque fulminante do coração e batera as botas, naquele momento. E foi assim, morreu do nada (mesmo já sendo tão ancião), tendo vivido como um falso santo, um homem pseudo-iluminado. E, o que era para ser uma breve estória, acabou sendo estória, mas, não tão breve assim.


Há furos na estória. Primeiro: Como João decidiu apenas apedrejar alguém, caso ouvisse a frase "quem nunca pecou, atire a primeira pedra"? Para isto, ele teria que já ter ouvido essa frase em algum lugar. Segundo: O conceito de pecado não é, em momento algum, definido. Mas, analisando do ponto de vista do cristianismo, de acordo com Os Dez Mandamentos, adultério é um pecado. Então, o que fazia João com uma amante? E em Banguecoque? João nunca pecou?